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Legenda: Marival Dias Chaves do Canto presta o primeiro depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), em audiência reservada a assessores e membros. 30 de outubro de 2012.
Reprodução: Memorial da Democracia

MARIVAL DIAS CHAVES DO CANTO, UM GUIA ENTRE AS SOMBRAS

 

Aos 45 anos, o ex-sargento Marival Dias Chaves do Canto deixou o anonimato para tornar-se uma das figuras centrais na denúncia de abusos e crimes cometidos pela ditadura civil-militar no Brasil. Com passagens pelo Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e pelo Centro de Informações do Exército (CIE), o baiano reuniu anotações e memórias do período de maior horror político no País. Nos referidos órgãos, trabalhou como analista de informações.

 

Chaves — como prefere ser chamado por familiares e amigos — aposentou-se do Exército em 1985, ano marcado pelo início da redemocratização no Brasil. Ele perdeu todos os benefícios que recebem os militares quando passam para a reserva. Em 1992, já seria capitão se tivesse permanecido na instituição, mas, no mesmo ano, concedeu uma longa entrevista ao repórter Expedito Filho, que, à época, trabalhava na revista Veja. Ao jornalista, detalhou crimes de assassinatos, prisões, torturas e ocultação de cadáveres cometidos por agentes que integravam os órgãos de repressão, além de detalhes da burocracia e da organização interna. 

 

Suas declarações explosivas chegaram às bancas de jornal em todo o Brasil no dia 18 de novembro de 1992.

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Legenda: Capa da revista Veja, da edição 1.262, que contém a reportagem “Autópsia da Sombra”.

Estampar a capa de uma revista seria impensável para um militar, mas o ex-sargento aceitou o pedido de Filho. Sem uma boa iluminação no dia da entrevista, a marcante capa que traz o ex-militar “sombreado” foi feita com o abajur do quarto de hotel onde estava hospedado. “Eu fui até ele. A minha ideia era trazer um efeito como se tivéssemos jogado luz ao porão. Eu segurei o abajur!”, conta o jornalista. À época, quem quisesse ler o exemplar precisava desembolsar Cr$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil cruzeiros).

 

Ao longo de treze páginas da edição 1.262 de Veja, a reportagem “Autópsia da Sombra” registrava, pela primeira vez, o depoimento de uma pessoa “de dentro” que rompeu o silêncio para delatar a clandestinidade da repressão militar. Familiares de desaparecidos, mortos e presos políticos obtiveram, pelos relatos, uma versão mais fidedigna do que realmente aconteceu com seus entes queridos. Mas a matéria apresentou tanto o que sabia, quanto quem era afinal Marival Dias Chaves do Canto.

 

Num dado momento da entrevista, Chaves criticou ao jornalista um certo ufanismo de membros das Forças Armadas e a maneira como colocavam a segurança nacional como uma “ideologia inviolável e suprema”, e se diferenciou enquanto descrevia a si mesmo como “um homem acuado”. Para Filho, a impressão se confirmou. “Ele era um personagem que carregava vergonha de ter participado do horror, que olhava para as filhas e lembrava do que fez, e pelo fato de nunca ter revelado nada. Ele se incomodava com isso”, diz.

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Legenda: Marival Dias Chaves do Canto para a revista Veja. 1992.

Ao repórter, afirmou não ter participado diretamente dos atos de violência, mas pôde detalhar como foram mutilados, esquartejados e ocultados os corpos de presos políticos e personalidades como o jornalista Vladimir Herzog e o deputado federal Rubens Paiva

 

Em depoimentos prestados de 1992 em diante, à imprensa e em comissões instaladas para investigar crimes do regime ditatorial, como a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva e a Comissão Nacional da Verdade (CNV), tornou a repetir que sua função era analisar, ler e produzir documentos, relatórios e informes que documentavam os frequentes abusos cometidos. 

De acordo com Filho, ex-presos políticos não reconheceram o ex-sargento quando era apresentada uma foto dele. Nos registros não constavam seu nome como um torturador, nem mesmo em relatórios formulados previamente como o Brasil Nunca Mais e entre integrantes do grupo Tortura Nunca Mais — um indício de que não havia, de fato, participado das prisões. “Fizemos um pente-fino”, afirma o repórter.

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Legenda: Em sessão pública no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília (DF), Marival Dias Chaves do Canto presta segundo depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV). 10 de maio de 2013. Reprodução: YouTube

Chaves aproximou-se de familiares de vítimas da repressão, esboçou um livro com outras revelações sobre a época, e, em 2012, declarou que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra era “o senhor da vida e da morte” nas instalações do DOI-CODI. Explicitou ainda que grupos de empresas garantiram apoio financeiro às operações mais violentas contra a oposição política. O ex-sargento relatou ter recebido ameaças de morte, encaminhadas, em sua grande maioria, por cartas postadas em Brasília (DF).

Filho acredita que a decisão de conceder a entrevista retirou um certo peso na consciência do ex-sargento, que decidiu não apenas falar naquela circunstância em 1992, mas a cada vez que fosse convocado a dar esclarecimentos. “Ele acompanhava famílias, se aproximou de algumas delas após prestar depoimentos. Lembro de como ele me revelava as coisas e vejo até que ele se transformou. Se tornou naturalista, vegetariano. Nesse período mais velho dele, eu o vejo como um outro personagem”.

 

Da relação pessoal, Filho conta que o ex-sargento se revelou um “bom sujeito, uma pessoa legal”. “A gente conversava. Até há uns dez, quinze anos atrás, ele me ligava. Eu não sei como ele está agora, sei que ele andou doente, mas a reportagem foi surpreendentemente importante e as revelações também”, diz. 

 

A origem militar e o trabalho como analista de informações poderiam ser entraves para a relação entre os dois, mas os temores se desfaziam à medida que a confiança mútua entre repórter e fonte crescia. “Eu agia com cuidado, mas, a cada dado que batia, eu sabia que ele falava a verdade e ficava mais confortável. Mas eu o tratava como fonte, prioritariamente. E uma ótima fonte!”.

“Ele não me colocou nenhuma casca de banana. Quando duvidava de algo dizia: ‘Isso eu sei, mas vai ser melhor ouvir de um terceiro’. Ele mesmo dimensionava o nível da informação, e, claro, eu ia checar. Foi um cara que jogou limpo comigo o tempo todo, muito corretamente e de um jeito tranquilo.”

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